quinta-feira, 26 de agosto de 2010

poema comum

a fumaça inebria a noite
a mulher que me olha
não encontra palavras
no entanto, o seu sopro
como que me invade
de palavras que não há
não das palavras que existem
mas das que estão por vir
como a fumaça que vai ao céu
essas palavras me preenchem
com a substância do que é vazio
da palavra
enquanto coisa
objeto
pois só dentro de mim
ela ri e chora, ganha vida
como o copo de vinho tragado se esvai
o menino que me olha
e o tempo em seu olhar
passageiro
como a palavra
que lhe dá um nome
uma identidade
um lugar entre os homens
um chão em que possa pisar
sentir-se firme
embora seja fumaça

palavra
ou vida
embora amanhã faça frio
e a tarde caia negra
e os sinos dobrem, é o tempo
passageiro
é o sopro a buscar os lábios
a fervura da água
o asfalto derretido e o homem derretendo
sobre a cidade de Teresina
mesmo que a cidade
de outro nome se chame Parnaíba
e o nome é o tempo da cidade
flácido, líquido em suas ruas
é o sonho, medida do tempo
não do corpo que possui a cidade
mas da cidade que o possui
e é a mesma em todo lugar
igrejas, praças, casas
e o tempo em cada lugar
é o velho na praça e o moço
que olha a mulher
que vê o cachorro
e ninguém sabe do tempo – codificado
mas o latido é o tempo
e o sorriso da mulher contém
o tempo do moço e o velho
é todo tempo – ser desejado
como a noite sem palavras
e o cigarro queimando o tempo
é o vento, passageiro
real
é o corpo, derradeiro
ruminando a cidade
fazendo do outro – o próprio tempo
um lugar que não há
não dos lugares que conhece
e vive e mora e anda
razão do tempo
mas o espaço que se encontra
entre o olhar da criança
e os olhos da mãe
entre o rio e a margem seca
o pavio aceso e a explosão
é o cosmos
o formigueiro em construção
tempo de milhares
de corais e o sal corroendo o tempo
é o mar, coisa de areia
palmeiras e homens-peixe
é a rede capturando os anos
mas o tempo é a rede
a teia da aranha imóvel
no canto da parede
e a mosca que em vão se debate
a mão do homem reza
o filho chora, a mulher o ama
e o tempo é saudade
campo do que já foi
o primo, o vizinho esquecido
o telhado quebrado
a paixão, outrora desafio do tempo
mas o tempo não se contém
como o lobo no cio à procura da caça
o catador de lixo perscruta
altivo, seu rosto é o tempo
a língua, enquanto nervo em transe
é a própria medida
concreta
e bebe e suga e lambe
o hálito matinal da cozinha
e fere, o coração e o pão
mas o grão é o tempo
que nasce
já feito
e morre
ainda novo – tempo inconseqüente
como a saia da mulata
rendeira, vendendo suas frutas
seu busto aberto ao sol
o alimento do dia
mas o dia não cresce
e o alimento não rende
o beijo não cessa
a luz apaga – mas é dia
e noite de vaga-lumes
o tempo

tempo;
já não existe
só o poema
comum
cotidiano
raro enquanto fumaça
que é seco
e é pânico de luz
não da luz do amanhã
que a todos chega
mas o ponto perdido acima das nuvens
do mesmo ar que falta
e abunda
que prende o pássaro
e o sol na altura da queda
é a chuva
e molha e varre e suspende
na suspensão mesma da palavra
a ramagem das folhas
é o que sobra
e nas esquinas há sombra
dos meninos ao chão
do nosso individualismo
tosco
medíocre
comum

thanatos

angústia
é não saber o que virá
quando o sopro que infla
findar,

e restar somente o nome
sem o tempo
imerso na ausência,

e não saber se o que é matéria
dilui um nada
de existência,

e resta o filho
com o nome do pai
que é o avô –

bisneto da saudade que há
e mesmo ela, a saudade
conduz
à outra saudade
que é saudade multiplicada
por milênios,

angústia
é não deter a finitude
quando o corpo já não responde,

e a sombra
transcende
cerrando o medo da verdade –

onde somos poeira
varrendo o cosmos da solidão
que se encontra poeira, de mais poeira
somos sol, que brilha e apaga